O legado das Olimpíadas do Rio de Janeiro: remoções forçadas e crescimento das milícias

Eu sou nascida e criada no Rio de Janeiro. Não no Rio de Janeiro turístico, aquele que faz parte do sonho de tropicalidade vendido sobre o Brasil, mas na periferia. Num bairro chamado Realengo. Lembro-me de ter celebrado a vitória do Brasil nas Olímpiadas, assim sem pensar muito. Lembro de ter conversas no meu bairro e o sentimento geral era positivo.

Havia promessas de que os Jogos trariam para a cidade obras urbanísticas importantes, como na mobilidade urbana, despoluição da Baía de Guanabara, melhores modelos de segurança pública, aumento de empregos e melhoria dos espaços públicos para lazer e prática de esportes, aumento das áreas verdes.

Eu que morava a mais ou menos 30 km do Centro da Cidade, e era usuária diária do transporte público, sofrendo em trens sem ar-condicionado – numa cidade onde no verão faz 40 graus – que atrasavam constantemente e, não raro, circulavam de portas abertas, me deixei seduzir pela promessa de mobilidade. Como o projeto previa instalações de equipamentos espalhados pela cidade, contemplado a sempre esquecida Zona Oeste da cidade, achei que algo de bom chegaria por lá.

A comemoração durou o tempo de celebração dos líderes políticos brasileiros à época – todos envolvidos em denúncias de corrupção, atualmente, mas esse é outro texto- e do tempo que eu aguentei ver a cobertura da mídia brasileira sobre a “vitória” do Brasil.

Tão logo desligamos a TV, e em especial quando começaram as obras para as Olímpiadas entendemos a pergunta que deveria ser feita: vitória para quem? Certamente, não era para os moradores da periferia do Rio de Janeiro. Não era para as mulheres negras. Não era para os homens negros.

Durante a preparação da cidade a prefeitura também realizou uma reorganização das linhas de ônibus, com diminuição de 25% da frota e extinção de linhas. Um doce para quem adivinhar de que parta da cidade foram retirados ônibus da frota…  da periferia, que já sofria com o transporte ruim. Os itinerários dos ônibus também foram diminuídos, assim depois da mudança o usuário tem de pegar mais um ônibus para chegar ao seu destino. Ou seja, sair da periferia ficou mais difícil e mais custoso.

A expansão do metrô, do qual todos falam vai da Zona Sul (a mais privilegiada da cidade) até a Barra da Tijuca (a área emergente da cidade localizada na Zona Oeste) não resolveu os problemas de transporte da própria Zona Oeste. O metrô fica longe de onde estão concentrados as moradias e os pontos de chegada dos ônibus dos demais bairros da cidade e da própria Barra da Tijuca. Uma das estações do projeto inicial permanece em obras. Ou seja, as transformações de transporte foram distribuídas de uma forma que não privilegiaram a região que mais sofria com o transporte: a Zona Oeste.

No processo de preparação dos grandes eventos pessoas foram removidas de suas casas e assistimos ao período histórico com o maior número absoluto de remoções na cidade. Mais de 77 mil pessoas foram removidas de suas casas pela Prefeitura, de acordo com estudo conduzido pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas. Não há dados oficiais ou detalhados sobre as remoções olímpicas. Algumas remoções foram realizadas por meio de desapropriações para a conclusão das intervenções urbanas no projeto. Muitas famílias foram removidas sob o argumento da Prefeitura de que estariam em zonas de risco de desabamentos, alagamentos, ou por estarem morando em condições insalubres.

A maioria das famílias removidas foram para Zona Oeste do Rio, conforme mapa produzido pela Publica. Para locais sem o mínimo de infraestrutura, sem bom transporte público, com poucas escolas e, principalmente, menos oferta de trabalho. Há diversos relatos das famílias sobre essa realidade e o empobrecimento que ela gerou.

Não bastasse isso, a Zona Oeste do Rio de Janeiro é uma região dominada pelas milícias. O contexto da criminalidade brasileira, a partir da década de 2000 e de início no Rio de Janeiro, milícia designa um modus operandi de organizações criminosas formadas em comunidades urbanas de baixa renda, como conjuntos habitacionais e favelas, inicialmente, e que a princípio efetuam práticas ilegais sob a alegação de combater o crime do narcotráfico. Tais grupos se mantêm com os recursos financeiros provenientes da extorsão da população e da exploração clandestina de gás, televisão a cabo, máquinas caça-níqueis, agiotagem, ágio sobre venda de imóveis, etc.

As milícias são de conhecimento das autoridades do Rio, tendo sido tema de debate durante as eleições e inclusive publicamente elogiada pelo prefeito do Rio Eduardo Paes. Se você conversar com os moradores do Rio, é senso comum de que as milícias saíram fortalecidas após as remoções. Eu que durante anos morei no subúrbio do Rio, em Realengo, acompanhei esse crescimento com meus próprios olhos, vi policiais vizinhos entrarem para milícia, vi o crescimento do poder econômico com meus olhos. O grande legado das Olimpíadas para a população pobre do Rio de Janeiro é o fortalecimento da milícia, ocupando os espaços onde o Estado se recusou a entrar.  A precariedade com que essas remoções e realocações foram feitas, sem segurança e sem estrutura para os moradores se tornou terreno fértil para a milícia.

Em 2015, os jornalistas do Jornal Extra constataram que, até então, todos os 64 condomínios do Minha Casa Minha Vida que já haviam sido inaugurados no Rio destinados aos beneficiários mais pobres eram alvos de grupos criminosos. Novamente, na minha experiência, de visitar parentes e amigos que moram nesses locais, eu circulo nesses lugares, a constatação jornalística se faz viva. A realidade é tão flagrante que ninguém nega.

Com a falência do Rio pós escândalos de corrupção revelados na Lava Jato, os elevados gastos após as olímpiadas e a farra com as contas públicas o que assistimos foi a decadência do Estado do Rio de Janeiro e, em especial, de sua capital.  Em 2018, foi decretada uma intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018, na área de segurança pública. A intervenção foi um salvo conduto, um passe livre, para o agravamento da violência e da letalidade policial no Rio, com o exército tendo permissão para entrar em qualquer casa em territórios considerados conflituosos. Assistimos a uma guerra em envolvendo crime organizado, milícia, exército e policiais. Não consigo explorar todos os resultados aqui, mas para os moradores pobres da cidade, nas favelas e periferias: a intervenção resultou em mais medo e mais poder para milícia.

A morte de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro que foi morta em 2018, em crime que também motorista Anderson Gomes, pode ser também entendida em meio a esse grande cenário de brutalidades no qual o Rio de Janeiro se encontra. A vereadora era uma grande crítica das milícias e da política de segurança pública do Rio. As investigações continuam em andamento, mas há ainda não há uma resposta conclusiva para o crime.

Em novembro de 2018, general Richard Nunes, secretário da Segurança Pública do Rio de Janeiro, afirmou que a vereadora Marielle Franco (Psol) foi morta porque milicianos acreditaram que ela podia atrapalhar os negócios ligados à grilagem de terras na zona oeste da capital.

Enquanto a polícia investiga a participação de milicianos na morte da vereadora Marielle Franco foi apresentada na Assembleia Legislativa do Rio moção de louvor em nome de dois ex-policiais envolvidos nas investigações relacionadas ao crime de grilagem na zona oeste. As moções foram apresentadas por Flávio Bolsonaro, filho do atual presidente do país.

Em 12 de março de 2019, dois ex-policiais, Ronnie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz foram presos pelo assassinato de Marielle e Anderson. Segundo relatos, Queiroz havia sido expulso da força em 2011 após ser preso em uma operação que ligava policiais a milícias e traficantes de drogas. Lessa se aposentou depois de uma tentativa de bombardeio contra ele. Antes disso, ele recebeu uma menção honrosa da Assembleia Legislativa do Rio.

O envolvimento da milícia em seu assassinato é a única explicação pública para essa tragédia dada até agora pelas autoridades. De qualquer forma, mesmo que agora tenhamos pessoas acusadas de puxar o gatilho, a verdadeira questão permanece: Quem mandou matar Marielle?

O processo depredatório que se instaurou na preparação das Olimpíadas aprofundou as desigualdades na cidade de tantas formas que eu acredito que ainda estão para ser descobertas.  O fato é que o preço da festa – que grande parte dos moradores da cidade afirma ter sido linda, apesar dos pesares –  continua a ser pago por nós: com sangue, suor e lágrimas.

Cria de Realengo, na Zona Oeste do Rio, Allyne Andrade é uma feminista negra, advogada, doutoranda em direito pela USP, atualmente cursando LLM em teoria crítica racial na UCLA School of Law